Review – Hell is Us
Hell is Us chegou como um jogo diferente dos demais! Saiba o que achamos do novo game de suspense atmosférico.

Hell is Us é o tipo de jogo que se alimenta da dúvida do jogador. Não da dúvida do “para onde devo ir?” típica de mundo aberto, mas do desconforto existencial do “por que estou aqui?” e “o que existe ao meu redor?”. A obra da Rogue Factor desafia padrões já na proposta: não espere setas, mapas ou waypoints piscando na tela. Você é jogado num universo em ruínas, governado pela desordem de uma guerra civil onde o sobrenatural tornou-se trivial, e cabe a você — sozinho — descobrir o significado daquele cenário destroçado.
História e narrativa: perguntas, traumas e consequências
Assumimos o papel de Rémi, membro de uma força de paz que entra em Hadea, uma nação dilacerada por conflitos religiosos e demônios quase inexplicáveis. Tendo sido retirado do país na infância, Rémi retorna adulto, motivado por uma busca pessoal: encontrar pistas sobre o paradeiro de seus pais e compreender o passado que nunca pôde viver. Só que o jogo raramente oferece respostas fáceis. Conversas são cheias de silêncios e ambiguidades, e cenários remetem mais a um filme de terror existencial do que a uma missão de herói tradicional.

Hadea simplesmente existe à beira do colapso, cercada de criaturas aterrorizantes e marcada pela crueldade humana. A população local tenta sobreviver entre facções rivais, tragédias familiares, fossas coletivas e memórias do horror. Curiosamente, em muitas áreas, a maldade das pessoas parece superar a dos chamados “demônios”, deixando claro que, aqui, o inferno não é uma entidade externa, mas algo produzido e perpetuado pela própria humanidade.
Liberdade radical: encontrar sentido sem bússola
Hell is Us vai além da falta de tutoriais — ele celebra a ausência de “mãozinha”. Não há indicadores de missão no mapa (aliás, nem mapa tradicional há na maior parte do tempo), nem setas coloridas dizendo para onde correr. Se você quer avançar, vai precisar ouvir as poucas instruções dadas por NPCs, interpretar diálogos, observar detalhes do cenário e confiar em sons distantes — um tiro, um choro, o crepitar de incêndio. O jogo, de propósito, exige uma atenção quase investigativa, quase como se desafiasse a lógica básica de design moderna. É um convite (ou um teste de paciência) para quem sente falta de descobrir tudo na unha, como nos velhos jogos dos anos 90.
Não é para todos, claro. Há momentos de pura frustração — você anda, volta, se perde, percebe que esqueceu uma pista importante em uma fala de um personagem e precisa vasculhar tudo de novo. Mas ter essa liberdade — ou esse descaso, dependendo do ponto de vista — é parte do pacote.
Mundo e design visual: entre o assombro e o grotesco
Gráficos em Hell is Us são um espetáculo curioso. O mundo devastado de Hadea é frequentemente lindo: campos amplos, ruínas cobertas de névoa e efeitos de luz marcantes. Mas nem sempre há uma coesão visual entre ambientes e NPCs: personagens secundários, por exemplo, variam de bem modelados a totalmente “fora do lugar”, quase como figurantes importados de gerações passadas.

A ambientação, porém, segue sendo o maior triunfo da direção de arte. Os monstros — sempre perturbadores, meio humanos, meio aberrações — transmitem desconforto genuíno. Os pequenos detalhes, como faixas de tecido voando, marcas de conflito pelas paredes ou luzes sussurrando dicas nas entradas dos refúgios, forçam o jogador a estar sempre atento.
Som, música e dublagem: atmosfera que convence
Sonoramente, Hell is Us entrega muito. O uso do áudio é parte fundamental da experiência — cada passo ecoa, cada choque de espada arrepia, cada lamento distante instiga. As melodias oscilam entre o inquietante e o empolgante, e em certos momentos, especialmente após as grandes batalhas, há músicas dignas de trilhas de cinema noir ou thrillers existencialistas.
O destaque absoluto vai para a dublagem do protagonista, emprestada por Elias Toufexis, cuja voz profunda e carregada de amargura traz vida ao personagem Rémi. Diálogos secundários também são bem entregues, e até crianças ou anciãos têm nuances naturais raras neste tipo de produção. Isso colabora para firmar a atmosfera melancólica e opressora do jogo.
Combate e mecânicas: entre o soulslike e a experimentação
Na hora do “fight”, Hell is Us claramente bebe da fonte dos Soulslike: barra de vigor, golpes diferenciados, esquiva precisa e, claro, paciência para estudar padrões de ataque dos inimigos. No entanto, o sistema não se limita à imitação — o drone KAPI (sua companhia robótica) adiciona frescor à fórmula, servindo desde lanterna até distração tática e fonte de golpes especiais.
Ao longo do jogo, upgrade de armas, troca de habilidades do drone e coleta de recursos criam uma sensação de progressão, embora o combate, por vezes, fique repetitivo. Os inimigos variam pouco: a maioria são variações dos mesmos delirantes humanoides conectados por cabos bizarros. A lógica de sempre priorizar determinados oponentes antes de avançar, embora eficaz, pode cansar após muitas horas.

Por outro lado, boa parte da graça está em experimentar abordagens diferentes: será que me aproximo na furtividade ou parto para o confronto aberto? Uso distração, embosco ou apenas tento escapar? O próprio jogo incentiva esse teste contínuo, raramente punindo o jogador de forma definitiva.
Missões paralelas e pequenas gentilezas
Explorar Hadea vai além das obrigações do protagonista. Pequenos eventos — conhecidos como “Boas Ações” — aparecem pelo mundo, propondo ajudar NPCs desvalidos sem expectativas de recompensa material. Essas histórias pontuais revelam que, até em meio ao caos, há espaços para gentileza e humanidade. Você pode ajudar um velho a enterrar o filho, resgatar uma criança ou alimentar um bebê faminto, e nem sempre há prêmios palpáveis. Mas talvez a verdadeira ideia seja justamente essa: fazer o certo, mesmo que ninguém esteja olhando ou agradecendo.
Puzzles, exploração e descobertas
A ausência de mapas e marcadores transforma cada missão paralela, mistério e segredo em um desafio real de raciocínio. Sabe aquela velha sensação de ter que anotar pistas, manter caderneta do lado ou confiar na memória? Aqui ela é básica. Alguns puzzles são simples, outros chegam a ser enigmáticos — tudo depende da atenção, curiosidade e disposição do jogador a procurar detalhes e dialogar com cada personagem.
O jogo convida à exploração metódica, recompensando o olhar atento e o esforço em reconstruir histórias presentes no ambiente, seja traduzindo inscrições antigas ou descobrindo segredos em catacumbas.

Pontos negativos: não é para todos
Quem procura um roteiro mastigado, ação frenética e evolução constante talvez estranhe as escolhas de design ousadas de Hell is Us. O combate, por mais intenso que seja, cai na repetição. As motivações do protagonista, principalmente em busca dos pais, podem soar pouco convincentes ou desprovidas de carga dramática real. Os personagens secundários raramente cativam, tornando o elo afetivo com o mundo mais tênue. E há que se mencionar as inconsistências técnicas: transições entre 60fps em gameplay e 30fps nas cutscenes causam estranhamento, e o contraste visual entre cenários e NPCs pode quebrar parte da imersão.
Se o seu interesse está em horror puro, jumpscares ou variedade absurda de inimigos, a experiência talvez seja frustrante. O terror aqui é muito mais do desconforto psicológico e da sensação de abandono do que do susto explícito.
Vale a pena?
Hell is Us é uma experiência inusitada que valoriza autonomia, atenção e o prazer de se perder. Optando por desafiar o jogador a pensar, explorar e absorver o ambiente em vez de guiá-lo por trilhas evidentes, o jogo entrega um universo denso, repleto de pequenas histórias e grandes mistérios. Entre acertos e tropeços, permanece original e, para quem aprecia jogos autorais, imersivos e desafiadores, é uma jornada intensa — daquelas que marcam justamente por serem diferentes.
Seja pela atmosfera, pelo combate tenso, pelo design corajoso ou pelo simples prazer de ficar perdido em um mundo estranho, Hell is Us é o tipo de obra que divide opiniões — e, talvez, este seja seu maior mérito. O inferno, ao final, é tão assustador quanto fascinante justamente porque ele é, acima de tudo, humano.