Review | Surpreendente e ousada, a 4ª temporada de Orange is the New Black
É gratificante para quem acompanha uma série, assisti-la e observar que desde o início ela já tem um propósito e não decepciona mesmo depois de quatro temporadas inteiras. O grande trabalho reflexivo da Netflix em séries como Orange is the New Black, House of Cards e Demolidor marca uma nova era no universo dos seriados, […]
É gratificante para quem acompanha uma série, assisti-la e observar que desde o início ela já tem um propósito e não decepciona mesmo depois de quatro temporadas inteiras. O grande trabalho reflexivo da Netflix em séries como Orange is the New Black, House of Cards e Demolidor marca uma nova era no universo dos seriados, assistir a estas séries te faz refletir sobre assuntos que normalmente conhecemos superficialmente, ou nem tínhamos parado para pensar antes.
Impossível assistir e não perceber que esta temporada é a qual reflete mais a realidade das prisões dos EUA e as de maior parte do mundo. Na primeira metade da temporada ocorrem fatos que preparam o terreno para tudo o que explode na segunda metade dela, bem mais impactante do que seu início.
O tema principal foi o processo da privatização da penitenciária, o racismo entre os grupos que são formados lá dentro e o abuso de poder dos seguranças.
Sempre unindo pessoas inesperadas em situações inusitadas, Alex e Lolly – detenta com problemas psicológicos – se envolvem em um dilema corrosivo ao cometer o assassinato de um segurança que foi contratado para matar Alex. Foi uma cena de legítima defesa, mas como uma detenta poderia provar isso? A análise psicológica das personagens diante do ocorrido é fascinante de se acompanhar.
Na terceira temporada, Doggett (Taryn Manning) teve uma breve amizade com o segurança Coates (James McMenamin) que logo se tornou abusiva. O assunto agora explorado foi o pós-estupro. Como os personagens principais e a amiga e confidente de Doggett, Boo (Lea DeLaria), lidam com isso não poderia ter sido melhor representado em tela, nada é passado por cima, acompanhamos a história de todos os ângulos, a vingança, o possível perdão e a personalidade de Coates. Em um diálogo pesado, vemos a complexidade do assunto:
Coates: “Você acha que eu estuprei você?” – Doggett: “Sim. Quero dizer, do que mais você chamaria aquilo?”
Coates: “Mas eu te amo, eu te disse isso. E eu te disse isso quando, quando… Eu disse isso” – Doggett: “Então?”
Coates: “Então isso faz as coisas serem diferentes” – Doggett: “Mas eu não senti que foi diferente”
Nós fomos criados em sociedades que consentem tantos horrores mascarados de coisas boas, que ainda é preciso desenhar para lembrar às pessoas sobre moralidade ética.
Outro ponto fortíssimo retratado na série foi a transfobia e a jornada de Sophia Burset (Laverne Cox) que teve seus remédios cortados, foi enviada para a segurança máxima e recebeu nada além da falta de um tratamento digno.
Apesar de os grupos formados na prisão sempre serem formados com base na cor da pele, o peso do racismo foi um extra de destaque nesta temporada. Tentando tirar proveito pessoal, Piper Chapman (Taylor Schilling) acaba por juntar mulheres que defendem a ideia retrógrada da superioridade da raça branca. Enfrentamentos envolvendo negócios ilegais com as vendas das calcinhas e provocações entre grupos deixou com que os espectadores ansiassem pela “queda” da Piper, que veio de forma bem mais pesada do que se era imaginado: as latinas marcando a suástica na pele dela. Aliás, a atuação de Shilling nesta temporada está acima de qualquer coisa que eu já tenha visto com ela.
O processo de privatização não poderia ter sido mais real e, claramente, sujo. O que importa aos empresários é colocar o maior número de cabeças possível dentro da penitenciária; quanto mais gente, mais dinheiro eles recebem.
Acompanhamos também, com muito nojo, o desinteresse deles ao se depararem com sugestões do diretor Caputo (Nick Sandow) de cursos e aulas que podem ajudar no crescimento do intelecto das detentas mas optam por capacitar as pessoas ao mercado de trabalho ao invés de construir um ser socialmente ativo e pensante. Elas começam a trabalhar em reformas na penitenciária sem receber nada por isso.
E, claro, não podemos esquecer o processo de seleção dos novos seguranças de Litchfield: ex-militares. Por quê? Porque são mais baratos e são “a escolha perfeita para o lugar e a situação”.
Com claro abuso de poder, presenciamos ações que só faz aumentar o ódio das detentas por eles. Colocam Flores (Laura Gómez) em prova de resistência em cima da mesa do refeitório, pois, para eles, esta é a única medida cabível já que todas as celas da solitária estão cheias, outro acha totalmente aceitável apontar o revolver contra a cabeça da Maritza (Diane Guerrero) só para conseguir o que quer. Arranjam brigas e apostam dinheiro para ver quem vai ganhar.
Os últimos quatro episódios que parecem todos fim de temporada. Mesmo retratando tantos assuntos importantes para a sociedade, os diretores não se esqueceram da triste realidade de quem sai da cadeia após ter cumprido sua pena, em busca de uma vida melhor para poder se sustentar e sustentar os filhos, mas sai sem rumo, sem preparação, sem saber como e onde recomeçar por causa dos olhares preconceituosos de outras pessoas pelo seu passado, fica até parecendo que a cadeia era um lugar melhor, o único possível de se viver.
Em “The Animals” (4×12) e “Toast Can’t Never Be Bread Again” (4×13), os dois últimos episódios decisivos para tudo o que foi construído ao longo da temporada, apresentam a emocionante revolta e os protestos pacíficos das detentas aos abusos sofridos exigindo a demissão dos novos seguranças, que reagem usando a força que causa a morte de uma das personagens mais queridas da série. A burocracia e a manipulação das informações correm a solta internamente entre os assessores que redigirão os textos que serão ditos para as emissoras, refletindo a impunidade da morte de pessoas esquecidas pela sociedade.
“Eles nem mesmo disseram o nome dela” – marca o início do fim. A última cena deixa o gancho perfeito a ser explorado na próxima temporada.
A 4ª temporada de Orange is the new Black foi a mais sombria para todos os personagens da série, mais do que se pressupunha. Esta foi a mais madura e a mais realista. A mostra da realidade, uma realidade triste, desumana, nojenta, abusiva e emocionante. A Netflix pegou pesado nesta temporada, mas não no sentido inatural; o que ela fez foi algo incomum, porém normal. Somos tão acostumados com séries de super-heróis, comédias e romances que às vezes nos esquecemos como é a realidade, mesmo aquela que não vivemos, mas é vivida por milhares de pessoas no mundo todo.